foto: José Tomas, o espanhol que ao entrar para a arena afirma estar preparado para morrer
O EU DIANTE DO TOURO ESTÁ SOZINHO?
100mim não conhecia bem António Lobo Antunes. Dois livros (parece que ele escreveu 22), passagens de outros, muitas crónicas (as da Visão). Alguns membros da família. Muitos prémios (mas nisto estou, em parte, com o que ele disse ontem, o mais importante nos prémios é o dinheiro). Que devia ser o Nobel (eu até sou suspeita porque tenho Saramago como escritor). Até ontem não estava bem certa. Convidaram-me para ir à FLAD ouvi-lo. Acabei por ir. Era uma coisa sobretudo para estudantes americanos (isso eu não sabia, só me apercebi quando vi uma sala a abarrotar de americanos, e portugueses poucos: era ter ido ao site da FLAD). Ele próprio estaria a contar só com americanos, como nos apercebemos depois.
A curiosidade era grande e, sempre que posso, tiro os chinelos. Para obter certezas vou a correr. Tinha dele uma escrita grande, às vezes ciclónica, um novelo que não se desenrola nunca, repetitiva, embriagante, cansativa. Mas uma certa atracção por uma coisa maior que o livro, que nas entrelinhas lá está. Mas uma escrita muito a empatar ou a adiar qualquer coisa. É escritor? Não é escritor? Sorry, mas eu penso com a cabeça e as mãos, e julgo que, em absoluto, não se pode desligar a obra do seu autor. Queria vê-lo em carne e osso (com Ovídio, um autor que ele citou como um dos seus favoritos, isso é impossível), porque é esta é a minha circunstância e facilita o conhecimento. Ver os olhos, o olhar. Tocar se puder. Para mim é natural. A conclusão é que é mesmo escritor, e que a partir de ontem faz parte, de forma mais presente, da minha companhia.
Passo a contar porquê. E faço com as minhas palavras, repetindo o que ele, como grande entertainer e com um sentido de humor inconfundível (às vezes demasiado cru, mas muito certeiro porque desmonta todas as máscaras, todas mesmo, não há cinismo que lhe escape; o dele, se é que o tem, é-lhe íntimo, não o conheço assim tão bem…) testemunhou.
Escrever é dar um passo mais longe, e a certeza de que se é escritor é experimentar que não se pode viver sem escrever. A escrita são as perguntas milenares e a última pergunta tem diante de si um abismo. Bem lhe perguntamos se continuar a escrever é pressupor que há resposta, ao que ele deixou um composto e desenvolvido “não sei porque escrevo”, “não lhe sei responder”…
Determinante para ele foi a mão que segurou a sua mão, antes da operação que fez quando lhe diagnosticaram um cancro. A mão que agarrou a sua até à anestesia. Nunca mais se vai esquecer, repetiu. Voltou diferente, não mais esquece esse tempo.
Continuar a escrever para viver e a viver para escrever. O segredo para ser escritor, perguntaram-lhe. Embora tenha citado muitos autores e contado histórias hilariantes sobre o tema, a prova está em que vida e escrita se confundem e que não há fórmulas: o eu diante do touro está sozinho, frisou, silenciando os risos que nunca faltaram, ritmados, naquela sala da Fundação Luso-Americana. E que ninguém desce de uma cruz vivo. E que o escritor sofre mais que os outros homens, e que sofrer é horrível.
Chegou a altura dos olhos, do olhar e do tocar. 100mim teve a certeza de estar diante de um homem que sabe até onde quer ir. Sabe por e tirar a máscara muito bem, quando lhe apetece e quando quer. Dotado de uma inteligência fabulosa sabe mais do que diz, e sabe que sabe que não diz tudo o que sabe. E isto diante da famosa folha branca, às vezes menos branca do que a querem fazer.
O abismo de que falou na conversa do Auditório: “é preciso saltar?”, pergunto hoje. Só se pode fazê-lo na certeza de que há uma mão que nos vai agarrar. Tal como no Hospital. O eu e o touro não estão totalmente sozinhos.
A vida, voltamos às palavras de Lobo Antunes, não tem sentido sem escrever, e apesar de já estar estar tudo escrito, o homem tem tendência para se esquecer. Por isso, continua a escrever. “A melhor maneira de dizer as coisas é única boa.” Por isso é que os grandes livros são um milagre.
Dos lindos olhos que tem, o olhar dele a certa altura não tinha qualquer máscara e eu tive o privilégio de ver um homem. Um “eu” como o meu, que anda neste lide, às vezes distraído, mas que vê a vida consolada quando alguém lhe pega a mão, ou se “pegam” as mãos. Não precisamos de estar (quem sabe quando?) à beira da faca ou da morte. Mas como disse ontem António Lobo Antunes, os homens tem tendência para esquecer. É verdade.
E do que sei do meu toureio a pé ou das “pegas” de todos os dias, experimento – e nisso a natureza não falha; o material tem sempre razão – é que se há razões para investir (o mesmo é: saltar o abismo), é avançar. Só assim o sofrimento se torna humano e a escrita uma beleza. Não é preciso enrolar tanto. Como ele disse a certa altura, é sermos “mais” crianças. Rápidas. Inteligentes. De olhos impressionados – uma expressão da qual ele fez, alías, um pequeno e certeiro exercício fenomenológico. O que mostra que o tempo pode ser um instante. Como cada cigarro que fumava enquanto falava, ontem, no jardim.