A vitalidade filosófica das “Confissões” de S.Agostinho

Fátima Pinheiro

A vitalidade filosófica das Confissões* de Santo Agostinho vê-se não só pela forma como ao longo de 1600 anos tem provocado e alimentado, seja pela positiva, seja pela negativa, a obra de inúmeros pensadores, como também, e acima de tudo, pela profundidade reflexiva e espiritual que a determina e desenha. O segredo de tal profundidade prende-se à humanidade que se abre sem rodeios. O que se confessa ou afirma é o homem, naquilo que ele tem de universal. A riqueza do que se revela prende-se assim com aquilo que determina e conforma a filosofia de S.Agostinho. Por outras palavras, o seu discurso articula a natureza humana de tal modo que oferece resposta à pergunta pelo sentido da vida. Não se fica pela psicologia, não se fica pela moral. Detem-se apenas diante do Absoluto Criador sem o qual nada seria. Sem o qual todas as regras e qualidades carecem de densidade, cor, substância. A moralidade de S.Agostinho funda-se num encontro que tudo decide e diante do qual se decide a vida que se entende e quer plena de sentido.

O que determina e conforma as Confissões é, por um lado, uma inquietude permanente, categorial, na procura daquilo que satisfaz plenamente o homem. Trata-se da procura daquilo que se sabe que ainda não se tem, já que tudo o que se tem não iguala o homem a si mesmo. Permanece um crédito de algo que não se encontra mas se pressente que existe, porque nada do que se encontra iguala a promissora grandeza da busca. Por outro lado, o que determina e conforma a obra daquele que confessa o encontro que sacia a sua fome integral é isso mesmo que se encontra. A confirmação é dada pela verdade que é encontrada: não me procurarias se não me tivesses já encontrado[1]. A obra dá-nos conta, sobretudo dos Livros VII a X, da história desse encontro. Narra também aquilo que o precede (sobretudo dos Livros I a VII) e, como não podia deixar de ser, delinea a nova vida que desse mesmo encontro emerge. O centro das Confissões é então o encontro do Infinito com a liberdade do finito. Dimensão sempre presente, ela aparece como o eixo a partir do qual se adquire uma nova visão do passado e do futuro. É por isso que os livros XI, XII e XIII se dão num registo que não apenas o narrativo, adensando-se aqui a carga metafísica desta obra prima da literatura.

A reflexão sobre a natureza do tempo e sobre a criação (Livros XI a XIII) parece mergulhar-nos num discurso alheio às reflexões que a precedem. Embora esta parte final do texto se distingua da restante, podemos dizer que, no seu todo, os registos entrecruzam-se, fazendo apenas os últimos três livros uma explicitação do que se pode encontrar desde o inaugural “tu nos fizeste para ti, e o nosso coração está inquieto enquanto não repousar em ti”[2]. A explicitação dá-se na “medida”, no “peso”, do que acontece no jardim de Milão e tem como seu campo de trabalho a razão nos seus usos filosófico e teológico. Debruçar-nos-emos na e com a competência do primeiro, isto é, não nos vamos apoiar nos conteúdos fornecidos pela Revelação. Veremos a riqueza da filosofia de Santo Agostinho enquanto mostra os passos que tornam razoável a decisão por uma existência nova, recriada na Revelação em que se põe fé. Um último ponto da nossa reflexão insere nesta fecunda linha de pensamento a filosofia de Maurice Blondel que confessa também que a vida plenamente humana é aquela que se abre ao sobrenatural.

II

A categoria da inquietude está presente desde a infância, sendo disso mesmo clara ilustração os episódios ou etapas recordadas: o roubo das pêras, o seguimento das doutrinas maniqueístas, o estudo e ensino do neoplatonismo, a amizade de Ambrósio e tudo o mais. Aparentemente sem um fio condutor S.Agostinho conta-nos o que fez, o que pensou, o que acreditou, mas sempre, importa não esquecê-lo, para nos dizer quem é e quem somos. Ler as Confissões é identificarmo-nos na mesma inquietude, desdobrada em mais ou menos dispersas inquietudes. As diversas coisas que fazemos ou deixamos de fazer são feitas sem nós, isto é, sem a consciência do que somos. A reflexão agostiniana devolve o homem a si mesmo. A conversão é a passagem da alienação do desejo de felicidade plena, que mesmo inconscientemente move o mínimo gesto de cada homem, à vitória de uma humanidade verdadeiramente confortada.

Percorrem-se diversas sendas, exigindo-se uma hermenêutica adequada, sem gangas nem falsos preconceitos. Para uma leitura das Confissões, e sobretudo a leitura filosófica, há que entrar no rigor das distinções. Importa pôr de lado tudo o que é carga secundária. Para exemplificar, quem diz roubo de fruta, diz roubo de outra coisa qualquer; o que interessa neste episódio é uma intencionalidade que todos reconhecemos como universal ou essencial. Para dar outro exemplo, se Santo Agostinho se pudesse referir à espantosa realidade dos mundos que visitamos na Internet, isso em nada aumentaria a intenção já presente na seguinte exclamação: “Deslocam-se os homens para admirar as alturas dos montes, e as ondas alterosas dos mares, e os cursos larguíssimos dos rios, e a imensidão do oceano, e as órbitas dos astros e não prestam atenção a si mesmos”[3]. Adivinhando a grandeza da herança, e subinhando o mesmo ponto: “Oh! Se os homens se reconhecerem homens…”[4].

Procura-se o gosto do oculto, prossegue-se a paixão pela verdade, indagam-se as razões da felicidade autêntica. Momento de viragem para uma inquietude filosófica sistemática será a morte de um grande amigo, o que leva Santo Agostinho a reconhecer que, desde então, se converteu para si próprio num grande problema, numa “questão magna”[5], uma “terra de dificuldades”[6]. Todo este movimento mostra uma humanidade insatisfeita nas suas satisfações: roubar a fruta é bom “apenas” porque é proíbido[7]; a inconsistente visão dualista do maniqueísmo não dá razão da unidade que se experimenta; o “Uno” do neoplatonismo é abstracto e afasta-se do que se sabe de Jesus Cristo na sua proximidade e concretude humanas, o que para Santo Agostinho nunca foi posto em causa[8]; o que se entrevê na amizade de Ambrósio, na já desejada conversão, é “ainda” uma distância a abraçar na liberdade que, no entretanto, se limita a repetir “ainda não, ainda não”, ou “já vou”, “vou já”[9], num adiamento que o leva à pergunta: “Porque não já?”[10]

A filosofia das Confissões tem como objecto esta inquietude, este movimento da razão que procura uma plenitude, a razão adequada da sua insuficiência, do seu não se bastar a si mesmo. Não se trata então de um olhar para o passado para nele se fixar ou para nele se limitar, mas antes de um olhar para si mesmo. Sempre no horizonte d’Aquele que mais tarde se irá encontrar, e não sem a inspiração platónica do Banquete, afirma-se a páginas tantas no estilo que tornam únicas as Confissões: “voltavas-me para mim mesmo, arrancando-me das minhas próprias costas, onde eu me tinha posto, porque não queria ver-me, e colocavas-me diante do meu rosto”[11]. O que se pretende é então explicitar “não quem fui, mas quem já sou e quem ainda sou”[12], tarefa que não esconde a dificuldade. O objecto da filosofia não se dá assim de um modo imediato na clareza dos seus contornos, mas é oferecido à mediação do olhar que, inteligentemente, lhe obedece. Identificado o objecto, importa saber o método desta indagação existencial.

III

O caminho aberto pela filosofia agostiniana parte do reconhecimento inteligente da necessidade de uma realidade absoluta e infinita sem a qual se anula a potencialidade inesgotável do perguntar experimentado de uma forma clara e evidente. O perguntar, animado do desejo de felicidade e de verdade, exige como sua condição de possibilidade o nível de realidade que assim imediatamente aparece no horizonte como misteriosa luz, razão, sentido a que se aspira. Corrigindo a sua posição inicial de ignorância em relação à presença desse nível fundante, Santo Agostinho reconhece agora que objectivamente não há passo da razão que o possa anular: “tu eras mais interior do que o íntimo de mim mesmo”[13], “tu estavas comigo e eu não estava contigo”[14], “estavas dentro de mim e eu fora, e aí te procurava”[15]. Reconhece-se a necessidade de do exterior se aceder ao interior.

O caminho para Deus passa então pela natureza, pelo “mundo exterior”, mas aí não se detem, sendo ela mesmo a indicar a sua própria insuficiência e a necessidade de caminhar para o “mundo interior”, isto é, ao lugar da memória. Memória não é aqui entendida apenas como memória psicológica, mas antes como um amplo campo de investigação, uma intencionalidade carregada de sentido, “santuário amplo e sem limites”[16]. Com mais rigor podemos dizer que o interior é a dimensão superior sempre presente porque é por seu intermédio que se interroga o exterior e se verifica a correspondência da verdade da insuficiência das coisas como resposta. Nas palavras de Santo Agostinho: “(…) a este [o interior]como presidente e juíz, é que todos os mensageiros do corpo faziam saber as respostas do céu, da terra, e de todas as coisas que neles existem, quando dizem: ‘Não somos Deus’…”[17].

O mundo interior exige a pergunta “Que sou eu então, meu Deus? Que natureza sou?”[18], ao que se segue a resposta: “uma profunda e infinita multiplicidade”[19],”uma vida multiforme, multímoda e extraordinariamente ampla”[20]. É o mundo da memória que aqui não é entendida apenas como memória psicológica, embora essa seja também uma dimensão presente. O filósofo nela encontra “planícies e vastos palácios”[21], indicando-se assim a amplidão e riqueza – umas vezes labiríntica, outras pública, umas de alegria, outras tristeza – do que nela se encerra.

Múltiplas são as facetas da memória. Assim, a recordação do passado, memória psicológica, não se confunde com o re-cordar do presente. Este nível transcendental da memória é a condição de possibilidade da procura e do reconhecimento de que aquilo que se encontra a adequa. Ao encontrar o que ardentemente se procurava, o coração vislumbra a fonte do seu movimento e confirma no seu juízo que é isto e não aquilo[22]. O discurso das Confissões cruza-se neste ponto com o do Do Livre Arbítrio, uma vez que em ambos a memória é fenomenologicamente descrita como campo de intencionalidades, ocupando nele a ideia de verdade um lugar de destaque como aquela realidade interior que permite reconhecer a existência de Deus. Assim, sendo a verdade imutável e absoluta (por exemplo, “No ano 2001 o Porto é capital europeia da cultura” continua a ser verdade no futuro, mesmo para um observador doutro planeta se este se quiser referir ao que se passa na Terra), ela não pode tirar a sua consistência daquilo que é mutável e relativo, ou seja da nossa experiência imediata. Só um nível de realidade absoluta e imutável garante a verdade das verdades que a memória encontra na sua reflexão. Encontrar a verdade é então encontrar a sua fonte: Deus.

Mas como essa fonte, infinita e absoluta, transcende a razão do filósofo, então encontrá-la é também, de certa forma, perdê-la. Encontrá-la implica não compreender, perder o falso preconceito de quem julga compreender. O que há-de levar a uma contínua procura, isto é, ao por-se no caminho da compreensão. É a paradoxal alegria daquele que começa a conhecer o desconhecido: “Não importa se houver alguém que não entenda. Esse mesmo rejubile dizendo: ‘que significa isto?’, rejubile ainda assim e goste mais de te encontrar, não encontrando, do que de não te encontrar, encontrando”[23]. Importa contudo distinguir este perder daquele outro que é apenas ignorância ou desconhecimento da verdade.

O que se encontra ao encontrar Deus é aquele nível de realidade fundante. Absoluta e infinita, é vista pelo espírito como a transcendência por excelência. Chegado ao interior após percorrido o exterior, sobe-se agora para o superior. É então que se pergunta por Deus à terra[24]. Não obtendo resposta, o homem entra em si, re-flecte, e, ao con-centrar-se, des-cobre o que sempre lá estivera, e continua a estar, a dar razão, sentido e ser: o que me é mais íntimo que a minha própria intimidade, imanência de todas as imanências e transcendência de todas as transcendências[25]. “E assim gradualmente, desde os corpos até à alma…e daqui passando…à capacidade raciocinante…para que descobrisse com que luz era aspergida quando clamava, sem nenhuma hesitação, que o imutável deve antepor-se ao mutável”[26].

Desconhecer a condição de possibilidade do ser, do conhecer e do agir é usar a razão de uma forma incompleta, é ignorar a verdade do destino. É perder a qualidade dada pela marca de uma humanidade com a potencialidade de uma vida infinita. Infinita, isto é, dirigida na relação com o Infinito. O outro tipo de perda, aquilo que se perde ao encontrar a trancendência, é sinal de que o que se encontra é realmente transcendente. E para clarificar este ponto, importa distinguir entre Filosofia e Teologia. Perde-se o homem medida de si mesmo para se ganhar a felicidade eterna e imutável cuja fonte é a fonte da verdade[27].

IV

A distinção entre Filosofia e Teologia não é, como já notamos, a intenção principal das Confissões. O seu objectivo é fazer uma fotografia o mais adequada possível do que encontra em si mesmo ao reflectir as dimensões essenciais da sua humanidade. O que é o homem no homem que se experimenta na sua racionalidade. Estamos aqui sem dúvida no campo da reflexão que é caro a S.Agostinho. O seu despertar para a Filosofia dera-se bem cedo com a leitura do Hortensius, de Cícero[28]. Trata-se de uma exortação ao estudo da filosofia que o impressiona de uma forma radical. Pondo de lado alguns aspectos que considera menos atraentes, o nosso autor precisa aquilo que foi decisivo no seu percurso espiritual: “deleitava-me somente naquela exortação, porque com a sua exposição, era levado a amar, a procurar e a alcançar, a agarrar e a abraçar com força, não esta ou aquela seita, mas a própria sabedoria, qualquer que ela fosse”[29].

À razão não lhe interessa nada a não ser isso que lhe confere inteligibilidade e consistência, bem como lhe interessa tudo aquilo que a isso possa conduzir. S.Agostinho é bem claro, ele quer a Sabedoria. E acrescenta que não importa o que seja a Sabedoria, isto é, o filósofo parte na sua busca com uma ausência de preconceitos, na recusa ao “homem medida de todas as coisas” que mais não é do que um viciar o jogo à partida. Se há preconceito, isto é, se há algo que não deixa de estar presente a priori, é uma inquietude animada pela certeza acerca da possibilidade do encontro de uma razão para si mesma, de uma, passe a expressão, adequação adequada. Sem o entrever dessa possibilidade a razão paralisa, não há movimento mas apenas o vegetar numa alienação desgostante porque deformante. Referindo-se à vida que antecede o encontro com a sabedoria, interroga-se Santo Agostinho: “Onde estava eu…?”[30]. Ou ainda: “Esta minha vida assim, era porventura vida, meu Deus?”[3]?

Aquelas perguntas estão embebidas [32] num pesar que não deixa de dar o tom às Confissões. A este respeito refira-se uma das suas mais belas e emocionantes passagens, no livro X onde a páginas tantas se afirma: “tarde te amei, beleza tão antiga e tão nova, tarde te amei…”[33]. Aqui é notória a tristeza daquele que se retivera na distração de outras intencionalidades, de quem não soube procurar o seu destino; ela é no entanto vencida pela certeza do encontro que, na sua imprevisibilidade e gratuidade, devolve esse mesmo destino àquele que, a partir de um certo momento da sua vida, nunca deixou de ser dominado pelo desejo de querer ser verdadeiramente feliz. As imagens evocadas mostram a plenitude de um “eu” saciado: nada se pondo de lado, todos os sentidos são acesos no alerta da presença que não desilude. Trata-se da presença que, corrigindo todas as ilusões, excede também todas as expectativas: “ retinham-me longe de ti aquelas coisas que não seriam, se em ti não fossem. Chamaste, e clamaste, e rompeste a minha surdez; brilhaste, cintilaste, e afastaste a minha cegueira; exalaste o teu perfume e eu aspirei e suspiro por ti; saboreei-te, e tenho fome e sede; tocaste-me, e abrasei-me no desejo da tua paz.”[34]. “Ó minha alegria que tardaste em chegar! Calavas-te então, e eu continuava a afastar-me de ti atrás de várias e várias estéreis sementes de dor, com um orgulhoso abatimento e um desassossegado cansaço”[35].

A transcendência que se encontra em nada diminui, antes exalta, o carácter filosófico do trabalho das Confissões. A filosofia é então definida como uma filosofia que não deixa de ter como vector aquela categoria da possibilidade. Jamais se parte do a priori que nega que a Revelação possa vir a terminar o retrato do rosto humano. Mais, sem se deixar focar por essa luz incriada é impossível um conhecimento integral. Ir à raíz do pensar é parte integrante do conhecimento: “o espírito reivindicou, como própria de si, esta palavra [cogitare], de tal maneira que cogitari se aplica propriamente àquilo que se recolhe (conligitur), isto é, junta (cogitur), não noutro lugar, mas sim no espírito”[36]. Neste trabalho intelectual o concurso do sobrenatural é indispensável: “não me afaste, até que reúnas, desta dispersão e deformidade, tudo o que eu sou”[37]. E ainda: “em nenhuma destas coisas, que percorro consultando-te, encontro um lugar seguro para a minha alma senão em ti, em quem se possam reunir todas as minhas dispersões, e nada de mim se afaste de ti”[38]. Conhecer é assim o lugar do homem, a sua ordem: “As coisas menos ordenadas não estão em repouso: ordenam-se e ficam em repouso”[39]. Conhecer não é então outra coisa senão “recolher, pensando, aquilo que a memória, indistinta e desordenadamente, continha, e fazer com que, reparando nelas, as coisas, que estão como que colocadas à disposição na própria memória, onde antes, dispersas e esquecidas, estavam ocultas, ocorram facilmente à atenção já familiar”[40].

Perspectivando as Confissões, e já adquirida essa certeza da necessidade da Revelação, é assim que o afirma Santo Agostinho: “Confessarei, pois, o que sei de mim; confessarei também o que de mim ignoro, porque o que sei de mim sei-o porque tu me iluminaste, e o que de mim ignoro não o sei, enquanto as minhas trevas se não tornarem como o meio-dia na tua presença”[41]. O ponto de chegada da filosofia é então o de mostrar a necessidade do reconhecimento de uma fonte sobrenatural para o conhecimento integral da realidade. A decisão da razão essa já não compete à filosofia mas à liberdade pessoal diante de uma proposta que se vê como necessária: “Toma, lê; toma, lê(…)revesti-vos do Senhor Jesus Cristo[Romanos, XIII, 13]….”[42]. A partir daqui a razão continua o seu trabalho filosófico, mas agora de auxílio no aprofundamento das verdades reveladas, isto é, no terreno da Teologia e já não na articulação solitária, mas rigorosa, do que antecede o acto de fé. Santo Agostinho não se esquece contudo de notar que esse acto de fé não deixa de ser um acto da razão, o seu acto por excelência já que sem ele, ela permanece insuficientemente humana.

No panorama da filosofia contemporânea aparece-nos Maurice Blondel como o filósofo que de uma forma excelente soube articular imanência e transcendência e com elas, a filosofia e a teologia, a razão e a fé. Ravaisson profetizara-o ao afirmar que era próximo o tempo em que se puderia “ver finalmente cumprida essa grande frase de Santo Agostinho de que a verdadeira religião e a verdadeira filosofia se não distinguem”[43]. A contradição parece agora instalar-se no nosso discurso: afinal distinguem-se ou não se distinguem, filosofia e teologia? Façamos algumas distinções, que é esse o tom do discurso filosófico. O que Agostinho quer dizer é que a verdade que a filosofia procura e encontra é o Jesus Cristo da Revelação(= Deus revelado aos homens como verdadeiro Deus e verdadeiro homem)[44] que a religião ensina e a teologia estuda. São as duas faces de uma mesma moeda. “Em Vós está, verdadeiramente, a sabedoria”, é o que as Confissões não cessam de confirmar[45]. “Onde encontrei a verdade, aí encontrei o meu Deus, a própria Verdade”[46].

Afirmar esta unidade, a coincidência ontológica da verdade com Deus, não é, como poderia parecer à primeira vista, confundir as coisas. Aqui a filosofia tem a palavra. Se entendermos a teologia enquanto teologia natural, por oposição à teologia revelada, não há distinção entre filosofia e teologia, uma vez que a filosofia se apoia exclusivamente no uso da razão e nos conteudos que ela pode fornecer, seja para reflectir o finito seja para reflectir o infinito (=teologia filosófica, ou natural, para ultilizar o termo da tradição). A teologia revelada distingue-se da filosófica pela informação que se oferece à razão. Os dados da religião cristã, oferecidos à mesma razão que faz filosofia, são recebidos pela teologia revelada como conteudos a inteligir. No interior desta teologia, a razão desempenha múltiplas funções: clarificação, argumentação, explicação, interpretação.

A partir do momento em que a razão se decide por uma abertura à vida sobrenatural, tudo se passa a dar no contexto da fé. A razão é usada agora para o entendimento da fé, e já não apenas para o entendimento do que a ela conduz. De qualquer modo, Santo Agostinho não deixa de sublinhar que o acto de fé, de adesão ao superior é um acto da razão. É o seu acto por excelência, desempenhando aqui a filosofia uma função imprescindível, concorrendo à vitória da perfeição da natureza humana. A razão luta consigo mesma pela alternativa de uma decisão de abertura ou fechamento à acção sobrenatural. Trata-se de optar, utilizando a linguagem de L’action(1893), entre a vida ou a morte da acção. Nas palavras de Santo Agostinho, entre ser possuido pela morte ou pela vida[47].

É no livro VIII das Confissões que encontramos o dramatismo da decisão. Referindo-se à perspectiva de abertura, reconhece-se que “era eu quem queria, era eu quem não queria; era eu”[48]. Reconhece-se uma cisão: “Era esta a luta no meu coração: e não era senão de mim próprio contra mim próprio”[49].

Tarde ou cedo, o reconhecimento do sentido da existência aparece implacável. Aos que defendem a impossibilidade do Infinito, S.Agostinho desafia a um perguntar, ele também implacável: como é possível não reconhecer a inadequação do finito, dos finitos, como razão cabal para a existência do Infinito que se busca? Como é possível que o finito subsista e se aperfeiçoe a não ser por uma realidade absoluta, imperfectível?

Ao niilismo ou reconhecimento de que as coisas são “nada”, contrapõe-se o razoável reconhecimento da positividade do real: “O nosso Deus fez todas as coisas muito boas[50]. “Que sou eu então, meu Deus? Que natureza sou? Uma vida multiforme, multímoda e extraordinariamente ampla”[51]. A minha inadequação é o reconhecimento de que eu, na multiplicidade dos meus factores constituintes, não me faço a mim mesmo: “ Todas essas coisas são dádivas do meu Deus. Não fui eu que as dei a mim mesmo: não apenas são coisas boas, mas além disso, todas essas coisas sou eu”[52]. Posso querer convencer os outros do contrário, mas não me posso enganar a mim mesmo[53].

As Confissões explanam a riqueza de uma filosofia que não foge à questão da transcendência fugindo assim à falsa humildade de se considerar o que excede a razão como terreno proíbido para a filosofia. Então não é a própria razão enquanto tal que reconhece a referida transcendência? Afirmar a impossibilidade de um discurso acerca da transcendência não será já fazê-lo, contradizendo-se assim a si mesma e demonstrando a possibilidade daquilo que se quer negar? A coragem da filosofia está no seu olhar inocente diante das coisas que não cessam de evidenciar que há um outro que as faz. “Contemplá-las era a minha pergunta e a resposta delas era a sua beleza”[54]; a sua voz , a sua evidência de que não “eram” antes de o “serem” para se fazerem a si mesmas[55].

Afirmar a razão como medida de si mesma é por-se na falsa humildade de se considerar dono dos critérios de razoabilidade. A experiência e o bom senso mostram-se que as medidas são dadas e encontradas, nunca produzidas.

Os passos da filosofia chamam o homem a si mesmo, a memória ao reconhecimento de um “outro” que não se reduz nem às coisas nem ao nada. Permitem a consciência de um movimento que é sustentado por uma força que a tudo escapa, mas que a nada falta, sem a qual o discurso e o ser se esvaiem num mar de nada. As Confissões oferecem uma fenomenologia desse nível a priori do real: de como “aparece” ao “esquecimento”, permitindo assim a memória do “conhece-te ti mesmo.”

Para o aprofundamento ou conhecimento da identidade desse “outro” a filosofia sugere ou mostra razoável[56] a abertura da razão à vida oferecida pela Revelação; o “eu” prefere a conversão que dá vida à destruição que só provoca o aniquilamento. A decisão por uma existência nova, recriada na Revelação em que se põe fé, não sendo estranha à filosofia não lhe é contudo natural. Não lhe é estranha, porque é a própria filosofia que lhe dá garantias de razoabilidade; não lhe é natural porque a decisão inclina-se diante de algo que, não sendo contrário à razão é-lhe no entanto superior. Blondel, como sempre, é certeiro na distinção: o cristianismo é superior à razão, mas em nada o contraria[57].

Uma bela síntese da riqueza filosófica das Confissões é o que pudemos encontrar num texto de Paliard, aluno e mais tarde companheiro de Blondel e, segundo este, aquele que melhor compreendeu a riqueza filosófica de L’action. É como se ouvissemos o próprio S. Agostinho: “Deus não é um espetáculo. A sua contemplação é antes secreta, velada, desconcertante. Ele só se deixa, em certa medida, descobrir na fidelidade do movimento que para Ele tende, numa superação que, mediante as cisões, instala a paz e que, pelo desnudamento, proporciona a riqueza”[58]. A verdade não se manifesta em quem apenas a evoca[59], o amor da verdade não se dá em vez da verdade do amor[60], a a sua posse consiste mais em ser possuido do que possuir. A mediação das cisões, dos múltiplos percursos e discursos das Confissões, no desnudamento que é a conversão gota-a-gota, tem como condição de possibilidade, de raiz no ser, um amor que pesa mais que o esquecimento. Um amor que pertence ao Infinito, enchendo-se assim de significado uma das mais belas passagens das Confissões: “o meu peso é o meu amor; sou levado por ele para onde quer que seja levado”[61]. A Agostinho levou-o até si, até Deus.

* Utilizamos a edição crítica das Confissões (indicando livro, parágrafo e página), tradução e notas de Arnaldo do Espírito Santo, João Beato e Maria Cristina de Castro-Maia de Sousa Pimentel, ICM, Lisboa, 2000.

[1] A frase é de Pascal (Pensées,929) mas o espírito não podia ser mais agostiniano.

[2] Confissões I,1, p.5.

[3] X,15, p.457-459

[4] IX,34, p.429

[5] IV,9,p.133

[6] X,25, p.471

[7] II,9,p.65

[8] Referindo-se a Cristo S. Agostinho reconhece: “tudo aquilo que houvesse sem este nome (Cristo), embora douto, polido e verídico, não arrebatava todo o meu ser”. (III, 8,p.93)

[9] VIII,12,p.341

[10] VIII,28,p.367

[11] VIII,16,p.349

[12] X, 6, p.445

[13] III,11,p.101

[14] X, 38, p.491

[15] ibid.

[16] Cfr.X,15, p.457

[17] X,9,p.451

[18] X,26,p.473-475

[19] cfr.ibidem

[20] cfr.ibidem

[21] cfr.X,12,p.453

[23] I,10,p.19

[24] Cfr. X,9,p.449

[25] Cfr.III,11,p.101

[26] VII,23,p.305-307

[27] Cfr.X,33,p.485

[28] Cfr.III,7,p.91

[29] III,8, p.93

[30] II,4,p.59

[31] III,4,p.89

[32] II,18,p.79

[33] X,38,p.491

[34] X,38,p.491-493

[35] II,2,p.57

[36] X,18,p.463

[37] XII,23,p.635

[38] X,65,p.531

[39] XIII,10,p.689

[40] X,18,p.463

[41] X,7,p.447

[42] VIII,29,p.369

[43] Ravaisson, “La philosophie en France au XIX siècle”, p.154, cit. in Mário Pacheco, A génese do problema da acção em Blondel. Sentido de um projecto filosófico, Fundação Calouste Gulbenkian, Paris, 1982, p.140.

[44] Cristo Mediador, cfr. XI,39,p.599

[45] Job. XII, 13 (cfr. III, 8,p.93)

[46] X,35,p.489

[47] “Sede o nosso possuidor” (X,36) é o grito conclusivo das Confissões.

[48] VIII,22,p.359

[49] VIII,27,p.367

[50] VII,18,p.299

[51] X,26,p.475

[52] I,31,p.51

[53] “Conheci, por experiência, muitas pessoas que queriam enganar, mas ninguém que quisesse ser enganado” X,33,p.487.

[54] X,9,p.449

[55] Cfr.XI,6,p.553

[56] Muito antes da conversão já S.Agostinho o pressentia: “Dando já preferência desde então à doutrina católica, sentia que nela se mandava, com maior contenção e sem falácia, que se cresse naquilo que não se demonstrava – quer existisse alguma coisa, mas não para qualquer um, quer não existisse; pelo contrário, sentia que entre os Maniqueus se escarnecia da credulidade com temerária promessa de ciência e a seguir se impunha que se acreditasse em tantas coisas totalmente fabulosas e absurdas, porque não se podiam demonstrar.” (VI,7,p.227-229)

[57] Cfr.Maurice Blondel, “Le sens chrétien” in Exigences Philosophiques du Christianisme, PUF, Paris, p.14

[58] “Dieu n’est pas un spectacle. Sa contemplation est plus secrète, plus voilée, déconcertante. Il ne se découvre à quelque degré que dans la fidélité du mouvement vers lui, dans un dépassement qui installe la paix à travers les déchirements et qui donne la richesse par la dénudation.” Jacques Paliard, Profondeur de l’âme (1953), p.159, cit in Henri de Lubac, , Sur les chemins de Dieu, Cerf, Paris,1983, p.193 [a tradução é da nossa responsabilidade]

[59] Muitos são os que falam de verdade “mas só com o som e o ruído da língua.” (III,10, p.95). “Conversava muito como se fosse perito, e se não procurasse o teu caminho[Jo14,6] em Cristo, Nosso Salvador[Tito 1,4], não seria perito mas pereceria.” (VII,26,p.313)

[60] Cfr.X,59,p.521-523

[61] XIII,10,p.689