O Gebo e a Sombra (2011), de Manoel de Oliveira
Estreia Nacional, hoje

Manoel de Oliveira, O Cinema Inventado à Letra
Anabela Branco de Oliveira
Universidade Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD)

Manoel de Oliveira, O Cinema Inventado à Letra. PRETO, António, Colecção de Arte Contemporânea Público, Serralves, 2008, 180 p.

nota inicial de 100mim: este excelente artigo foi escrito quando António Preto – um homem que conhece Oliveira como poucos – ainda não tinha terminado o seu doutoramento; o lugar de onde o tirei (desculpas à autora), perdi-lhe o rasto, mas creio que ou do JL ou do site de Serralves.

«António Preto, doutorando em História e Semiologia do Texto e da Imagem na Universidade de Paris III, apresenta em Manoel de Oliveira, O Cinema Inventado à Letra, um rigoroso e muito bem fundamentado percurso analítico da estética cinematográfica de Manoel de Oliveira. O olhar crítico e profundo sobre as imagens oliveirianas, o percurso, tal como lhe chama o autor, estrutura-se em seis capítulos: A Construção da Imagem, O Olhar, A Síntese, A Palavra, O Teatro e O Cinema. Ao rigor do olhar crítico alia-se a escolha dos múltiplos fotogramas indispensáveis para a abordagem estética escolhida.

Na introdução deste estudo, intitulada Viagem ao Princípio do Cinema, António Preto estabelece uma abordagem lúcida e exaustiva sobre a obra cinematográfica de Manoel de Oliveira no percurso entre curtas e longas-metragens, entre documentário e ficção e, ao caracterizar a estética de Oliveira, enuncia as escolhas analíticas que desenvolve neste ensaio: “A ficção é um espelho da verdade”, refere o autor. Talvez seja por isso que Oliveira, insiste com tanta frequência na documentação da ficção e na ficção do documentário, reunindo, nesse gesto, as principais linhas de pesquisa em que se tem vindo a desenvolver a sua prática do cinema: a injunção do passado no presente, do teatro no cinema e da verdade no fingimento”. Define, nesta introdução, o percurso essencial do seu olhar face à obra oliveiriana – “Moderna e paradoxal, construída numa radicalização da linguagem cinematográfica, a meio caminho entre a procura da especificidade do cinema e a afirmação da sua irredutível impureza, no questionamento das demarcações entre documentário e ficção ou entre cinema, pintura, teatro e literatura, a obra de Manoel de Oliveira resiste a classificações categóricas”.

A Construção da Imagem estrutura uma reflexão sobre a modernidade. Analisa o percurso da montagem, do enquadramento, da sobreposição de planos e os olhares da modernidade na ausência de fronteiras entre documentário e ficção em Douro Faina Fluvial; a estética da montagem, a oposição entre a irregularidade da paisagem tradicional e a angulosidade rectilínea da paisagem moderna em Hulha Branca e Portugal já faz automóveis e o elogio da modernidade e a circularidade do processo industrial em Famalicão e O Pão.

Identifica o olhar do cineasta perante a arquitectura em O Pintor e a Cidade e O Improvável não é Impossível. Projecta a relação entre cinema e pintura em Nice… à propos de Jean Vigo e a recomposição das imagens em O Pintor e a Cidade, num percurso pela oscilação dos planos na construção da imagem. Apresenta uma reflexão rigorosa sobre a imersão de Manoel de Oliveira na literatura. Define a profunda relação entre o cinema, a literatura, a pintura e o percurso de teatralização na análise dos “tableaux vivants” em Francisca, Amor de Perdição e Le Soulier de Satin. Define a essência estética de fontes documentais pictóricas e escritas e analisa a significação dos objectos pictóricos no espaço do enquadramento cinematográfico, identificando o valor das projecções na composição do plano e na reconfiguração da lógica espacial e narrativa em Non ou a Vã Glória de Mandar e Espelho Mágico.

Apresentando um extremo rigor na escolha e na análise dos fotogramas, percorre a estética escolhida na projecção (espelhos, sombras e água) como imagem da auto-reflexibilidade oliveiriana, essencial no cinema – “o facto do espelho não ter frente nem avesso: o objecto e a imagem coincidem com o espelho no mesmo plano de formulação do cinema” – em Porto da Minha Infância, Amor de Perdição, O Passado e o Presente, Vale Abraão, Espelho Mágico e Um Filme Falado. As potencialidades expressivas das sombras são protagonistas de um jogo de simulação e de denúncia da instância narrativa em Aniki-Bóbó, Espelho Mágico, Acto da Primavera, Os Canibais e Palavra e Utopia.

O percurso de neutralização de uma parte da imagem como processo de estruturação do plano, de focalização narrativa e da exactidão do discurso é analisado em Le Soulier de Satin, O Pão, O Convento, Aniki-Bóbó, Inquietude e Passado e Presente. Nesse âmbito, António Preto sublinha “a eliminação de tudo o que, na imagem (ou no agenciamento das imagens), pode constituir ruído é, pois, a condição necessária à exactidão do discurso”. É nessa exactidão do discurso que a composição da imagem líquida como elemento estruturante entre pintura e cinema é analisada em O Pão, O Pintor e a Cidade, Douro Faina Fluvial e Aniki-Bóbó.

O Olhar estrutura uma análise acerca dos olhares das personagens dirigidas ao olhar do espectador porque o filme é projectado numa sala diante do espectador. São analisadas a relação entre os olhares dos actores e dos olhares da câmara e a oscilação entre pontos de vista objectivos e subjectivos e olhares indiscretos da câmara em Mon Cas e O Passado e o Presente. Os exemplos apresentados e o rigor da análise projectam uma reflexão sobre as potencialidades estéticas do olhar-câmara e a estruturação do olhar em relação ao teatro e ao cinema na relação campo/contra-campo. António Preto especifica o olhar como espelho e como testemunha do fora de campo em Party, O Passado e o Presente, Francisca, Espelho Mágico, O Princípio da Incerteza, Vale Abraão e Um Filme Falado.

As relações visuais entre personagens e objectos, a sua significação e essa relação com os olhos do espectador percorrem o olhar analítico sobre Douro Faina Fluvial, A Caça, Inquietude e A Divina Comédia.

O Dia do Desespero é pretexto para uma escolha estética – “Se o cinema é, nas palavras de Oliveira ‘um olhar indiscreto sobre as coisas, sobre a vida dos outros’, é preciso não esquecer (como o próprio cineasta não esquece e permanentemente sublinha) que essa vida só existe, no cinema, para se dar a ver, à câmara e ao espectador”. O processo dos pontos de vista e o pacto fílmico com o espectador na relação do olhar para a câmara é a alavanca de uma análise da não-ilusão do cinema de Manoel de Oliveira em O Pão, Espelho Mágico, O Quinto Império e Non ou a Vã Glória de Mandar.

Na completa interacção entre as obras, fundamentando exemplos e estabelecendo relações entre elas, analisa a implicação directa do espectador no discurso fílmico em Um filme falado, A Caixa e Cristóvão Colombo, o Enigma. Sublinha o carácter metafórico de uma câmara simbólica na significação do olhar para o espectador, especifica os enquadramentos do olhar do actor no espectador e percorre a articulação do olhar da câmara no olhar dos actores em Benilde ou a Virgem Mãe.

A análise detalhada da frontalidade e do plano fixo, com especial relevância para os percursos metafóricos da objectividade e da subjectividade na escolha de planos e enquadramentos, espelha-se em O Pintor e a Cidade, O Princípio da Incerteza e Le Soulier de Satin – “Apanhado neste fogo cruzado onde tão depressa um olhar é denunciador como denunciado, cumpre ao espectador unificar todos os pontos de vista e, gozando do seu livre arbítrio, produzir um julgamento”.

Síntese projecta a vocação sintética da imagem através da análise detalhada dos fotogramas escolhidos de O Passado e o Presente, A Caça e O Dia do Desespero. O processo sintético do plano e o percurso poético na construção do tempo são a alavanca de uma escolha que projecta exemplos de uma “sexualização da imagem” em Espelho Mágico, Vale Abraão, Inquietude, Os Canibais, Amor de Perdição e Douro Faina Fluvial.

A utilização oliveiriana de planos fixos e sequências que exprimem opiniões políticas e estruturam análises cinematográficas de situações ideológicas são alvo de uma reflexão pertinente em Cristóvão Colombo, O Enigma, A Caixa e Je Rentre à la Maison.

Numa análise profunda e detalhada dos fotogramas escolhidos, António Preto percorre a relação entre a plasticidade da imagem e a arquitectura do discurso terminando o capítulo com a confluência dos factores estéticos, simbólicos e discursivos na análise da metamorfose de Ema em Vale Abraão.

A Palavra apresenta a restituição, no cinema, da própria plasticidade do texto e sublinha a filmagem da objectividade material do texto. A palavra, como dimensão fundamental do cinema de Oliveira e os exemplos de corporização do texto no filme são analisados em Inquietude, O Dia do Desespero, Amor de Perdição e Palavra e Utopia. A questão epistolar como princípio narrativo é documentada com os exemplos das cartas e dos documentos de Amor de Perdição. A natureza cinematográfica da carta e a presença de cartas e livros “matéria e signo de ficção” são analisadas em Amor de Perdição, Francisca, Inquietude, Acto da Primavera, La Lettre e Palavra e Utopia. O filme literário e o cinema como importante ferramenta de análise de texto são projectados analiticamente em Vale Abraão, A Divina Comédia e O Dia do Desespero.

O Teatro estabelece o percurso estético da encenação do texto e do cinema e apresenta a relação de Manoel de Oliveira com o teatro em Acto da Primavera, A Divina Comédia e Mon Cas. O percurso do Corifeu e a voz off, a problematização de questões teatrais a partir de um ponto de vista cinematográfico e a análise profunda e consciente das questões palimpsésticas entre as duas artes projectam a ligação entre os espaços escolhidos do cineasta e o palco em Le Soulier de Satin, Os Canibais, Lisboa Cultural e O Passado e o Presente.

A transição entre o espaço da realidade e o espaço da representação e a representação do espectador definem uma escolha estética – “E é porque o litígio de ideias não pode sustentar-se na ilusão que Oliveira começa por defender que teatro e cinema são uma e a mesma coisa. O que esta afirmação traduz é uma oposição do autor a um cinema demasiado técnico, baseado em efeitos especiais e de montagem: para Manoel de Oliveira, é cinema o que se põe à frente da câmara, seja uma paisagem, uma natureza morta, ou um texto feito teatro.” – em Acto da Primavera, Viagem ao Princípio do Mundo, Aniki-Bóbó, Party, Porto da Minha Infância, O Princípio da Incerteza e Je Rentre à la Maison.

Em O Cinema, projectando a escolha estética de Manoel de Oliveira – o cinema como síntese de todas as artes – António Preto analisa o carácter auto-reflexivo do cinema definindo-o como primeiro e último objecto do olhar em Le Soulier de Satin e Mon Cas. Projecta uma imensa reflexão sobre a natureza da imagem cinematográfica numa profunda análise daquilo que considera a encenação do documentário e a vertente documental da ficção em Je Rentre à la Maison, Acto da Primavera e Viagem ao Princípio do Mundo. Apresenta a inclusão no filme da figura do realizador, da câmara e da equipa de cinema e define uma metáfora do cinema na dicotomia ideológica da curta-metragem Rencontre Unique.

Porto da Minha Infância e Belle Toujours são pretexto para a análise da elementaridade do fotograma e da materialidade da película no discurso fílmico. Lisboa Cultural, Mon Cas e Le Soulier de Satin são pretexto para a análise da ilustração das teorias da montagem e da questão da filmagem e da projecção, sempre uma perspectiva comparatista onde referentes fílmicos continuamente se completam e se recriam. O capítulo termina com a análise da recriação das sombras em Douro Faina Fluvial, Porto da Minha Infância e Acto da Primavera e com a definição das janelas como metáfora cinematográfica em Aniki-Bóbó e O Princípio da Incerteza.

António Preto conclui este percurso com uma antologia de textos, Ensaios, anteriormente publicados, depoimentos e análises do cineasta e dos seus filmes. Em Manoel de Oliveira, Agustina Bessa Luís apresenta o seu percurso pessoal na relação com o cineasta sublinhando “Não faz continuamente para chegar à perfeição, mas porque ama o imprevisto, o desconhecido de cada trabalho. Ele tem ciúme do que lhe escapa em cada filme que faz, e por isso persegue de uma forma narcísica o que lhe foge”. Em Antecipar a Eternidade, Regina Guimarães e Saguenail, estabelecem uma análise exaustiva da obra do autor. Em Palavra e Cinema, Manoel de Oliveira apresenta um olhar acutilante numa reflexão profunda acerca da essência do cinema – “Mas há abusos excessivos e injustificados e frequentes de movimentos da câmara em filmes e disto nunca vi que se falasse, quando em boa verdade tais movimentos de câmara não são justificáveis porque, na maior parte, não respeitam a autenticidade das formas do cinema, antes exibem acrobacias de uma câmara acrobata que as técnicas mais sofisticadas sofisticam, fazem do cinema coisa de circo.” Em O Céu é Histórico, Serge Daney e Raymond Bellour entrevistam Manoel de Oliveira numa conversa sobre cinema, tempo e História. O cineasta termina a entrevista dizendo – “Peço desculpa pela fraqueza das minhas respostas. Prefiro realizar filmes.”

António Preto não tem direito a pedir desculpa. O seu percurso analítico através da obra de Manoel de Oliveira carrega uma culpa incontornável: a do rigor e da honestidade intelectual. Depois de ler Manoel de Oliveira o Cinema Inventado à Letra, admiramos ainda mais a obra do Mestre. E António Preto é o culpado disso. A Manoel de Oliveira exigimos mais filmes. A António Preto exigimos mais olhares como este.»